sexta-feira, 18 de outubro de 2013

A Hora do Martelo

Anna viajava sob o nascer do Sol numa estrada cujo nome ela não lembrava. Havia bastante mato dos dois lados. Ela estava em uma motocicleta roubada. O verdadeiro dono já deveria estar morto há meses. A moça não usava capacete. Achava isso imprudente, mas não tinha encontrado o capacete e não quis perder tempo procurando. No lugar dele, usava óculos escuros e um lenço estampado de naipes de baralho - do qual ela não gostava - para proteger o rosto. Não tinha tanto cabelo esvoaçando. Ela o tinha cortado curto para não atrapalhar em nada, apesar de preferir longo. Presa às costas estava sua grande mochila com mais duas mudas de roupa, salgadinhos, seu martelo, uma toalha, uma escova de dentes e creme dental. Ela estava ficando preocupada com o último item. Mais cedo ou mais tarde todo o creme dental do mundo se esgotaria ou sairia de validade. Anna tinha decidido usar bicarbonato de sódio e/ou folhas de hortelã quando isso acontecesse, mas ainda não sabia onde encontraria essas coisas. Seu único agasalho era o que estava usando no momento para resistir ao vento da estrada. Também usava uma calça masculina (as da mochila também eram). Anna, assim como qualquer pessoa com bom senso, odiava os bolsos das calças femininas e mantinha o martelo no bolso quando precisava entrar em algum lugar sem a mochila.
Needles and Pins
Esse martelo estava com ela praticamente desde o momento em que ela percebeu que ficar esperando em casa não salvaria sua vida e decidiu vagar pelo mundo. Um dos primeiros pensamentos foi "Posso precisar me defender e esse martelo vai me ajudar. Também posso precisar pregar alguma coisa ou arrancar algum prego, mas isso é improvável.". Alguma hora ela poderia precisar de um martelo.
Eu sabia o que aconteceria.
A motociclista avistou uma construção à beira da estrada a uns dois quilômetros. Ao se aproximar, viu que era um posto da polícia rodoviária abandonado. Resolveu parar para ver se encontrava algo de útil lá dentro. Talvez houvesse alguma comida que não estivesse estragada, armas e até mesmo um vestiário em que pudesse tomar banho. Fazia alguns dias desde a última vez que tomara banho... Ou muitos. Ela não tinha certeza e não queria pensar no assunto. Só lembrava que tinha sido num rio e não foi confortável. Pessoas tomavam banho em rios nos filmes em ocasiões diversas e sempre parecia divertido, mas na prática não era. Anna queria tomar um banho de verdade. Com sabonete, de preferência.
Bléh
Estacionou a moto em frente ao posto. Olhou pela janela e não viu ninguém lá dentro. Ao entrar, poderia procurar as tais armas ou comida, mas a ideia de tomar banho estava pulando na sua mente e ela foi direto procurar o vestiário. Ele não era muito grande. Apenas um corredor um pouco largo com armários dos dois lados e um banco comprido no meio. Um pé-de-cabra estava no chão próximo à entrada. Anna o ignorou. As janelas acima dos armários de um dos lados deixava um boa luminosidade entrar. Os boxes com chuveiros estavam no fim do corredor. Anna apoiou a mochila no banco e tirou uma das mudas de roupa e a toalha de dentro. Se despiu e entrou debaixo de um dos chuveiros. A água estava fria, mas ela não se importou. Também não se incomodou com o sabonete extremamente ressecado que estava ali. Era melhor do que qualquer coisa que ela já tivesse encontrado durante sua jornada. Durante o banho, pensou em lavar as roupas anteriores e deixá-las para secar enquanto vasculhava o posto policial. O lugar parecia tranquilo e, talvez, ela não fosse incomodada nesse período. De qualquer forma, não era prudente perder tempo, então não demorou no banho tanto quanto queria poder demorar. Ela fechou o chuveiro, se enxugou e se vestiu rapidamente.

Assim que Anna pegou a toalha para estendê-la, ouviu as janelas de cima dos armários sendo estilhaçadas. Ela ficou entre as duas pessoas que pularam pra dentro do vestiário. A que estava mais próxima da entrada era um rapaz magricela de dentes podres vestido em trapos extremamente sujos. Anna não conseguiu identificar se a outra pessoa era um homem ou uma mulher, mas tinha a mesma aparência selvagem e avançou com velocidade impressionante para cima dela. Ela foi derrubada, mas conseguiu alcançar o martelo na mochila. Acertou uma martelada no nariz da pessoa que a atacou e se levantou rapidamente. Ao mesmo tempo, o rapaz pulou na direção dela e ela desferiu um golpe desajeitado na testa dele. As orelhas do martelo ficaram fincadas e ele caiu morto no chão. O outro ser selvagem pulou sobre as costas de Anna, derrubando-a, mas ela se livrou com uma forte cotovelada. Ela avistou o pé-de-cabra que vira ao entrar. Alcançou-o, acertou o adversário que já preparava outro ataque e ouviu o estalo do pescoço dele ou dela se partindo.

Anna esperou alguns segundos com o pá-de-cabra firme na mão até ter certeza de que ninguém mais a atacaria. Com o coração ainda acelerado, colocou as roupas anteriores dentro da mochila de forma desajeitada e pegou os óculos e o lenço de naipes de baralho. Desistiu de levar a toalha, que estava encharcada com o sangue do selvagem com o martelo na testa, e saiu correndo do posto policial. Torcia para encontrar em breve um lugar para abastecer a moto e continuar buscando por comida e armas. Se ela ficasse mais tempo ali, correria o risco de encontrar mais selvagens. Eles deveriam estar vivendo no meio do mato que cercava a rodovia.

Com o coração menos acelerado e ouvindo apenas o ronco do motor, Anna se afastava do posto policial espantada com a velocidade com a qual as pessoas já estavam se tornando animais. Ela sabia que aquele tipo de coisa aconteceria alguma hora, mas não que seria tão rápido. Fazia apenas uns dois anos que se podia dizer que o mundo era "terra de ninguém", como ela ouvira um homem que tinha uma caminhonete dizer em um bar semanas antes. Ela achava a expressão ridícula, mas não conseguia pensar em nenhuma melhor para descrever o mundo da forma que estava.

Por um momento, pensou que se preocupar com a pasta de dente era algo idiota. Os salgadinhos que carregava na mochila acabariam muito mais cedo do que a pasta de dente e eram muito mais importantes. Então se lembrou dos dentes podres dos selvagens que matara e chegou à conclusão de que, mesmo não sendo a maior das prioridades, a saúde bucal era necessária de um jeito ou de outro.

Assim que o matagal que cercava a rodovia acabasse e Anna se sentisse mais segura, ela pararia a moto para organizar o que carregava na mochila. As roupas totalmente bagunçadas estavam deixando-a com desconforto nas costas. É claro que não a deixava mais confortável o pé-de-cabra que segurava entre as costas e a bolsa. Quando parasse, também pensaria em algum jeito de amarrá-lo à garupa da moto ou à própria mochila.

Esse pé-de-cabra estava com ela porque era mais prático levá-lo do que perder tempo tentando arrancar o martelo da testa do rapaz. Um dos primeiros pensamentos foi "Posso precisar me defender e esse pé-de-cabra vai me ajudar. Também posso precisar mover algo pesado ou abrir alguma tampa metálica, mas isso é improvável.". Alguma hora ela poderia precisar de um pé-de-cabra.