domingo, 21 de maio de 2017

Prólogo Revisitado (ou O Som do Silêncio)


Pessoas de diversas culturas usam sapatos. De tempos em tempos é necessário que novos pares de sapatos sejam comprados, por diversos motivos. Os pés de cada pessoa podem crescer – coisa que normalmente acontece com crianças e pré-adolescentes – ou os próprios calçados podem acabar se desgastando. Existe também a possibilidade de uma pessoa simplesmente querer comprar um novo par. Mas não é todo dia que se compra um par de sapatos. Apenas pessoas com muito dinheiro e muito apreço por sapatos comprariam sapatos todos os dias. Para todas as outras, isso seria um desperdício absurdo de dinheiro.

Durante séculos, em muitas partes do mundo, para várias culturas, dinheiro foi a medida para riqueza. Muitas pessoas pensaram em formas de se lidar com o dinheiro como medida de riqueza e ninguém chegou a alguma conclusão realmente produtiva. Isso não impediu a humanidade de brigar muito para decidir quem tinha razão. Alguns grupos acusavam outros de querer nivelar a população por baixo, e se defendiam com o argumento de que gostavam mais de dar liberdade ao povo de ascender socialmente caso se esforçassem o suficiente. O outro grupo acusava o primeiro de viver sob um sistema que só funciona à base da desigualdade e selvageria social. Raramente alguém pensava em simplesmente mudar a forma de se medir a riqueza em vez de pensar em como ela deveria ser redistribuída. Conhecimento é a melhor riqueza que existe: não ocupa espaço e quando uma pessoa quer dividir, não precisa abrir mão do que tem. Todo conhecimento tem seu valor, como, por exemplo, conhecimento sobre como dirigir um veículo, sobre como cozinhar, sobre como escrever uma carta, sobre como cuidar de uma criança e sobre como curar doenças.

Na segunda década do terceiro milênio, cientistas do Qatar fizeram uma descoberta muito boa a respeito de como curar doenças. Ninguém se lembra ao certo o quê era exatamente, mas esses cientistas conseguiram produzir um remédio praticamente milagroso. Provavelmente curava uma única doença, mas devia ser uma doença tão grave – talvez câncer ou AIDS – que o medicamento foi chamado por muito tempo de "A Cura para Tudo". E isso irritou muita gente. É muito mais lucrativo para a indústria farmacêutica vender remédios que apenas aliviam a dor sem nunca removê-la por completo. Não é todo dia que uma mesma pessoa saudável vai ficar doente e se tornar um consumidor eterno dos produtos dessa indústria, mas manter pessoas doentes durante anos é garantia de uma clientela altamente fidelizada.

Sapatos não chegam ao fim de sua vida-útil tão rápido, por isso a indústria dos calçados é menos movimentada do que a indústria farmacêutica. Um único comprimido não pode ser tomado mais de uma vez, o usuário sempre vai precisar de outro dentro de algumas horas. Sapatos não têm nada a ver com medicamentos. Sapatos também não têm nada a ver com bombas e balas. A indústria bélica também é mais movimentada do que a indústria de calçados, afinal, uma bomba só pode ser usada uma vez e o usuário vai precisar comprar uma nova. Pessoas com muito dinheiro, num mundo em que riqueza se mede por dinheiro, têm muito poder sobre as outras.

Foi justamente quando se tornou de conhecimento público a criação da Cura para Tudo que a indústria farmacêutica decidiu utilizar sua influência sobre os governos, que utilizaram sua influência sobre a indústria bélica, e sob algum pretexto absurdamente falso, iniciou-se uma guerra. Essa foi a primeira guerra que atingiu todo o mundo. Já se perdeu na memória dos mais velhos quanto tempo separou o início da guerra do fim do mundo como era conhecido. Quando menos se percebeu, as civilizações tinham chegado ao fim propriamente dito e o caos se estabeleceu de forma que nunca havia antes ocorrido. A criação da cura para tudo foi o ponto de partida da jornada que resultou no fim do mundo. O apocalipse se estabeleceu.

Eron estava com os pés descalços porque seus sapatos já tinham se perdido há muito tempo. Ele caminhava com dificuldade e já não prestava mais atenção ao que estava ao seu redor. Não sabia se estava caminhando por ruínas ou por um deserto, não sabia se era noite ou dia e não sabia se sua visão estava turva por alguma tempestade de areia ou se seu cérebro estava aos poucos desligando suas funções. Talvez o cérebro do rapaz soubesse que era necessário economizar forças para que ele continuasse carregando sua mãe nos braços. Ele não se lembrava mais há quanto tempo caminhava, não se lembrava qual era seu destino, não sabia nem se em algum momento tivera um destino em mente. Além da visão turva e disforme de seu caminho, Eron tinha alguns flashes em mente de ter sido atacado junto a sua mãe numa briga num bar de estrada. Poucas instituições do velho mundo continuavam existindo e funcionando como bares de estrada, mas já não se sabia quanto tempo demoraria até que os proprietários percebessem que o pouco dinheiro que estavam ganhando não teria valor e que aquelas bebidas não seriam eternas.

Uma onda de alívio preencheu o corpo cansado de Eron quando o rapaz distinguiu à distância uma cruz em meio ao vazio que preenchia seu campo de visão, provavelmente de uma igreja. Talvez alguém na igreja pudesse ajudar sua mãe. Reuniu esforços para caminhar cada vez mais rápido em direção à igreja, enquanto forçava os olhos para definir os contornos da igreja. Estava cada vez mais e mais perto do destino, mas cada vez mais cansado... Até que finalmente, a poucos metros das portas da igreja, suas pernas cederam e caiu ajoelhado, com a mãe inerte em seus braços. Ali, retomando os 5 sentidos e dando forma em sua mente aos arredores, viu como o que havia restado de suas roupas estava vermelho e percebeu que a igreja era rodeada por um enorme cemitério. Também percebeu que sua mãe estava tão viva como as pessoas enterradas no lugar. Eron não conseguiu chorar porque estava desidratado demais para produzir lágrimas. Tentou gritar, mas não produziu som algum. Talvez sua mãe já estivesse morta há horas e seus sentidos fatigados não tinham sido capazes de notar. Agora tinha ficado claro para ele que todo o sangue em sua roupa era proveniente dos ferimentos da mãe. Ele já não sentia mais dor no corpo, sentia apenas raiva. Raiva da guerra, raiva da humanidade, raiva do pouco que havia restado do mundo, apenas o pior do que a sociedade tinha a oferecer. Mais uma vez, tentou gritar, sem produzir som algum, o que não fez diferença, já que sua audição, assim como os outros sentidos, estava se desligando de novo.

Quase involuntariamente, Eron segurou com forças o corpo se sua mãe falecida e continuou tentando gritar. Tentou e tentou... Até que sua mãe abriu os olhos novamente.