sexta-feira, 19 de setembro de 2014

O Pregador de Sigma

Em frente à mercearia no centro da pacata cidadezinha de Sigma, no Reino de Sempremais, um homem vestido em trapos sujos gritava coisas estranhas. Em suas mãos havia uma pequena caixa de madeira. Sua barba volumosa e tão suja quanto a roupa disfarçava sua idade. As pessoas que passavam por ali olhavam para ele com cara de desprezo ou medo.
5 anos pode demorar
— Ouçam o rugido do Leão! Ouçam as trombetas! OUÇAM OS CARROS DE GUERRA! —, gritava o jovem bem idoso, ou o velho ainda novo.
Mas, no fim, sairá a sentença
Obi, o dono da mercearia, saiu do estabelecimento com irritação estampada no rosto e uma vassoura na mão, espantando o homem que gritava e não largava a caixa de madeira. Ninguém fez nada para ajudar o homem mal-trapilho. Na verdade, a maioria das pessoas que estavam por perto ficaram aliviadas em ver alguém fazendo algo a respeito e tentando tirar o homem dali. Kiva, do lado de dentro da mercearia, passou a dar mais atenção à cena que se passava do lado de fora do que aos produtos que considerava comprar. Afinal, era agricultora. O que a mercearia teria para lhe oferecer que ela já não pudesse ter em casa?
Ao final, todos vamos louvar
— INFIÉIS, deveriam se preparar para a guerra! A Era da Terra está para acabar! —, prosseguiu o homem — Aqueles que não se voltarem aos velhos hábitos sucumbirão perante Os Mecânicos! SERÃO DEVORADOS PELA MORTE QUE GUARDAM OS SERVOS DE AZALEIA!
Se encerrará então, toda e qualquer desavença?
Ao ouvir essas palavras, Kiva se lembrou de sua infância. Mas não foi uma lembrança que chegou suavemente, como a visita esperada de um bom amigo. Foi uma lembrança que invadiu seus pensamentos como Orcs que invadem uma vila. Os pensamentos da moça levaram-na de volta à época em que ouvia histórias do seu avô, treinava para se tornar uma arqueira real como todas as mulheres da família e sonhava também em ser uma exploradora para visitar as Terras Proibidas e ver com os próprios olhos os tais Guardiões da Morte a quem o louco provavelmente se referia. Mas esses tempos já eram distantes. O avô de Kiva já não estava mais entre os vivos e as chances de se tornar arqueira real eram tão inexistentes quanto as de se tornar uma exploradora.
Quantas vezes as repetições se repetem?
— RENDAM-SE! Juntem-se! Reunam o exército de Fly! Coloquem as tropas de Fly em ação! —, continuou o louco, a uma distância da mercearia que Obi não parecia estar disposto a percorrer.
Até onde vão as iterações?
As memórias a respeito de seu avô e sua infância fizeram com que Kiva não visse tudo que o homem gritava como um amontoado de bobagens sem sentido ou como simples absurdos. A moça estranhou a sensação que a tomou. Não era uma sensação normal. Tomava todo seu corpo, não só sua mente, e falava diretamente a ela. Ele está certo, dizia a Sensação. Todos esses que o estranham e o temem são meros ignorantes. Você sabe do que ele está falando. Mas Kiva não sabia do que o homem estava falando. Só sabia que estava deslocada. Ao dar atenção ao que dizia o mal-trapilho, já não era mais comum como todas as outras pessoas que estavam por perto. Aquelas pessoas achavam que não havia nenhum fundo de lucidez em qualquer loucura. Mas pessoas assim também acham que fogo e água nunca podem se misturar. E se esquecem que existe o vapor.