terça-feira, 21 de maio de 2013

Com Barba e Sem Placa

Havia boatos.

A estrada passava por meio das montanhas. Subia e descia e era sinuosa como uma cobra. Há um bom tempo o silêncio já tinha caído e a noite já tinha chegado. O motorista da caminhonete ainda usava o chapéu, apesar da ausência da luz do Sol. A luz da Lua estava bloqueada pelas montanhas. Era exatamente por isso que ele ainda estava de chapéu. Ele gostava do chapéu e ninguém poderia julgá-lo ou rir da cara dele naquelas circunstâncias... ou em qualquer outra circunstância, provavelmente. Já fazia umas 3 semanas que ele não via nenhuma pessoa. Os únicos seres vivos que viu foram animais pequenos que caçou. Não que fossem suficientes para matar a fome. Estava vivendo mesmo era a base de alimentos enlatados que conseguia encontrar em cidadezinhas abandonadas.
Sem mensagem escondida dessa vez.
Enlatados e enlatados. Malditos enlatados! Não dava para viver sem comida, mas ele entregaria todas as latas por uma boa lâmina de barbear. Nos velhos tempos, não suportava deixar a barba por fazer, e, agora, não encontrava boas lâminas. Por que diabos eles levaram as lâminas boas embora?! "Não sei com que armas será lutada a 3ª Guerra Mundial, mas a 4ª será lutada com paus e pedras." Com lâminas é que não seria. Sua espingarda, pelo menos, estava ao seu lado.
Mentira. Tem sim.
Pelo retrovisor, ele viu a placa traseira de sua caminhonete cair na estrada, mas não se importava com isso. Ninguém se importava com isso e não haveria ninguém mais para se importar. Entretanto, a existência da placa o fez se lembrar de que aquilo era um carro e carros precisam ser abastecidos. O tanque estava na metade e não ia durar. Ele dirigiu por mais 40 minutos até se sentir sortudo. Avistou um posto de gasolina à beira da estrada. De longe não parecia abandonado por causa de uma única lâmpada acesa sobre uma bomba solitária de combustível. Ao se aproximar também notou uma lojinha de conveniência, mas ela estava toda apagada. O carro não parou de maneira brusca, mas foi o suficiente para que uma lata de feijão que estava no painel rolasse e acertasse o motorista entre as pernas. Malditos enlatados! Por que eu fui colocar essa porcaria aí em cima?! Isso nem ao menos faz sentido! MALDITOS ENLATADOS, ele pensou. Fazia tempo que não ouvia música no rádio porque não queria gastar a bateria do carro, mas achou prudente deixar os faróis acesos naquele lugar.
O de sempre, quem está certo?
Ao descer do carro com sua espingarda em mãos, estava andando desajeitado devido à dor e pisou no que parecia ser sujeira de cachorro. Quase xingou em voz alta, mas viu que aquilo estava seco há dias e resolveu poupar a garganta.
Um nó foi desatado.
Considerando que nenhuma luz estava acesa dentro da lojinha, poder-se-ia presumir que havia sido abandonada, mas a lâmpada sobre a bomba estava acesa e aquilo era estranho. A lâmpada era de LED. Diziam que aquilo era o futuro. Grande futuro. Siriris voavam ali. Siriris, sararás, aleluias, cupins voadores. Inseto irritante. Não vou chamar isso de aleluia. Não é um bicho louvável. Muitas siriris.
A desejada preocupação voltou :)
O tanque da caminhonete não iria se abastecer sozinho. O motorista completou e encheu um galão de reserva que trazia consigo. Era hora de entrar na lojinha e ver se tinha algo ou alguém lá. Alguém para servir um café talvez. Torcia para que essa pessoa aceitasse enlatados em troca. Malditos enlatados.
Um ou dois passos foram dados.
Ele entrou e não ouviu nada além do piso de madeira rangendo a seus pés. Demorou uns 5 minutos para encontrar um interruptor. Felizmente, uma lâmpada lá dentro funcionava. Ninguém no balcão que pudesse lhe servir café. As prateleiras estariam vazias se não fosse por uma ou outra lata de qualquer porcaria aqui e ali. Viu um fogão, um pouco de água e pó de café. Aquilo sim era estranho. Não parecia coisa de lugar abandonado. Mas o fogão não era elétrico e qualquer pessoa que tivesse levado coisas dali teria pegado todos os palitos de fósforo. Deveria ter alguma caixa no porta-luvas da caminhonete. Ele saiu pela porta da lojinha e desviou da nuvem de siriris que estava entre ele e o carro. Pegou uma caixa de fósforos e deixou a espingarda no banco.
Já sei a destinação.
Havia boatos.
Ainda não sei o caminho, mas é um começo.
Ele demorou um pouco para se lembrar de como café era feito, mas conseguiu preparar. Encontrou um dispositivo musical com um pen drive conectado. O aparelho estava funcionando então ele o ligou. Seria bom ouvir alguma música para variar um pouco. Segundo o visor do tocador, a música que começou a tocar se chamava "Where Have All The Good Times Gone?". Colocou o bule de café sobre o balcão, pegou uma caneca e deu a volta para se sentir como um cliente comum.
As msgs escondidas são os posts.
O barulho do chão estava ficando irritante. Tão irritante quanto tudo. A solidão, o barulho, os enlatados, os siriris e aquela noite de verão... fria. O frio subiu por sua perna. Algo tão gelado que foi capaz de fazer o frio atravessar sua calça jeans. Ele olhou para sua esquerda e sentiu sabor de morte. Mais tarde perceberia que o sabor era devido à mordida que deu em sua própria língua com o susto. No momento, só conseguia pensar no que estava ao seu lado. Era um animal. Um cachorro estranho. Sua cor não era normal. Ele não pertencia mais ao mundo dos vivos. Seu focinho estava próximo o suficiente da perna do motorista para que a respiração soltasse aquele ar gelado de morte. O motorista caiu do banco em que estava sentado e foi se arrastando de costas para a porta e com os olhos fixos no cão. Em vida, talvez pudesse ser apenas um cãozinho dócil, mas aquilo não era vida e seu olhar era assustador. Seus dentes eram assustadores. Tudo era assustador. Ele se arrastou o mais rápido que conseguia, mas parecia estar em câmera lenta. Talvez fosse o frio, talvez fosse o nervosismo ou talvez fosse apenas o esforço para se arrastar que tivesse causado a câimbra na perna dele. Mas aquilo foi uma bênção. A câimbra o fez chutar uma prateleira que era bem menos resistente do que aparentava. Uma lata pesada rolou e acertou o cão em cheio na cabeça. Benditos enlatados. Se ele estava morto antes, não se sabia o que estava agora. Não era uma boa ideia ficar ali esperando para saber.
Mas não nesse caso.
Ele se levantou mancando e correu o mais rápido que conseguiu para fora da lojinha, mas assim que saiu, encontrou aquele que deveria ser o dono do cachorro. Provavelmente, estava escondido atrás do estabelecimento e despertou com a música. O dono avançou para cima do motorista com velocidade bem mais rápida do que se espera de... um morto. O motorista correu através da nuvem de insetos e o morto o seguiu. O defunto não pareceu se importar com as asinhas na cara e continuou. A porta da caminhonete estava aberta e o motorista conseguiu alcançar sua espingarda. O morto estava praticamente sobre ele quando teve a cabeça estourada pelo tiro. A bala o atravessou e estourou também a lâmpada de LED. O motorista entrou na caminhonete que já estava com os faróis ligados e deu a partida o mais rápido que conseguiu para sair dali.
yarilm
Havia boatos e eles eram verdadeiros. Dizia-se que mortos andando era uma das consequências da guerra. Antigamente, as pessoas amavam zumbis em histórias de ficção. Depois passaram a deixá-los de lado. Posteriormente, voltaram a gostar de histórias sobre eles e assim se alternavam as opiniões de tempos em tempos. Provavelmente, a alternância acabaria e a opinião geral ficaria estagnada em aversão agora que os zumbis eram de verdade. O motorista estava assustado. Não tinha acreditado em nenhum desses boatos que ouvira desde a época da guerra. O que mais o incomodava é que esse não era o pior dos boatos. E todos os outros também poderiam ser verdade. Ele olhou para o lado e ficou levemente satisfeito de saber que ainda tinha a espingarda. Seu chapéu havia ficado no posto de gasolina, mas isso não o incomodava tanto. Também não se incomodava com o fato de não ter conseguido beber seu café. Não iria cair no sono tão cedo.

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